Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Todas Mente

O que fazemos com nosso desamparo?

Não resolvemos o sofrimento das crianças, mas nos prontificamos a estar ao seu lado

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Freud já alertava para os efeitos psíquicos do desamparo do ser humano ao nascer. Basta comparar o bebê com um potro recém-parido para constatarmos que nossa jornada é repleta de perrengues. O que nos tornou tão vulneráveis, por outro lado, teria sido responsável pelos profundos vínculos entre nós e nos levado a desenvolver uma linguagem diferenciada.

Todos os animais se comunicam, mas a nossa linguagem é baseada no equívoco e na polissemia, o que produz glória, mas também desgraça. Glória, pois nos obriga a ser poetas, e desgraça, pois nos condena à mais profunda incomunicabilidade. Essa tensão entre o impossível de comunicar —para nós mesmos e para o outro— e a necessidade imperiosa de tentar fazê-lo nos move.

O desamparo humano é inevitável, mas há formas piores e melhores de encará-lo. Ao contrário do que a vã filosofia neoliberal faz crer, não superamos o desamparo existencial acumulando bugigangas, sejam elas bens ou títulos. No máximo, podemos driblá-lo pontualmente por meios que vão da fé de que papai e mamãe garantiriam tudo à inesperada religiosidade do descrente diante da morte. Como diz o ditado: não há ateus em avião caindo.

Ajudar as crianças a lidarem com a falta de garantias, ou ainda, a lidarem com a garantia de que algo sempre falta, passa pela forma como os pais encaram sua função. Não resolvemos o sofrimento das crianças, mas nos prontificamos a estar ao seu lado o quanto for possível. Nem a certeza de que não morreremos cedo demais podemos lhes dar. Sofrer só, mas não necessariamente desacompanhado, é o consolo possível entre humanos.

A questão central do filme "Todos Nós Desconhecidos" (2023) é justamente a maneira como o personagem —interpretado pelo hipnótico Andrew Scott— teve que encarar a trágica morte dos pais aos 12 anos.

Toda perda amorosa requer o trabalho de luto. Freud não escolhe a palavra trabalho à toa, pois se trata de um processo que exige grande elaboração para descobrir o que se perdeu junto ao objeto amado. O personagem de Scott não teve a chance de se fazer conhecer pelos pais como adulto, vivendo uma vida que ele sabe que não foi a que os pais planejaram para ele. Óbvio que essa aceitação projetada nos pais é a aceitação que só pode ser alcançada por nós mesmos. Sem ela fica impossível seguir uma vida minimamente satisfatória, sozinho ou acompanhado. Daí que assumir que não há garantias diante do imponderável é a única forma de seguirmos vivendo de uma forma que valha a pena.

Um tema central do trabalho de Carolina Maria de Jesus é o desamparo social e a absoluta carência de recursos, mas o que torna sua obra grandiosa é sua recusa em se resumir a isso. Ali, onde tudo falta, é o desamparo subjetivo que a leva a narrar sua penúria e seu sofrimento. Ela escreve para se ouvir e para se fazer ouvir, num mundo em que pobreza e invisibilidade andam juntas e no qual se nega a existência subjetiva de quem não possui bens.

Estátua de Carolina Maria de Jesus
Estátua de Carolina Maria de Jesus, em Parelheiros (SP) - Vicente Vilardaga

Mas nem mesmo o maior dos poetas seria capaz de transmitir a dimensão de uma vida, pois o desamparo está dado justamente pelo cobertorzinho curto da linguagem, que deixa sempre algo de fora.

O final de uma análise não aponta para o autoconhecimento ingênuo, nem para qualquer desenvolvimento pessoal ou pretensão de superioridade aos demais. De fato, ele se resume a assumirmos radicalmente nosso desamparo estrutural, o que está longe de ser fácil. A partir dessa constatação, nos restaria buscar nas relações com os outros —tão desamparados quanto nós— algum tipo de consolo, de alento.

O individualismo, como sabemos, é a religião do homem moderno escancarando que fizemos a pior escolha diante do sofrimento. As redes sociais potencializaram o embuste da onipresença do outro e recolheram a mais profunda solidão entre seus usuários.

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